quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Solidade

O cidadão solto
ou ser da cidade
é bicho-do-mato
na vida levada

Sonhou ter alívio
da pressão da pedra
e a perda da pressa
apressou-se em buscar

Mas tempo não via
pois não lhe faltava
conquanto sobrasse
de não inventá-lo

História ironia
nervoso se fez:
tranqüilo trocou
seus trocos por tralhas

Comida por prato
bebida por copo...
contente enfiou-se
num recipente

Só sai pra pegar
areia pro vidro
fechar-se em garrafa
virar ampulheta

Comprou compradores
criou comprimidos
compare, comprove:
primata oprimiu

E o dessentimento
que agora lhe invade
é fruto do fruto
que tanto lhe furta

Nos dias às noites
trapalha atrabalha
na tela a mazela
da lâmpada o bulbo

O carro o carrega
mas não se encarrega
da tosse da urgência
da chaga a fumaça

O mar não suporta
seus barcos besuntos
seus óleos motores
seus olhos petróleos

As carnes mulheres
os porcos perversos
os prados pastados
os pobres enfermos

Imagem emite
sonoro a si mesmo
de mente o controle
ao outro se omite

Calado consome
prazer onanista
conquista por fim
a imobilidade:

Um cidadão solto
ou ser da cidade
nem bem liberdão
quão não solidade

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

A vida em xeque, ou terror cotidiano (parte 3 - final)

(link para parte 1)
(link para parte 2)

Baudrillard fala de um poder global dominante e um pensamento único. Isto é, afinal, a que me refiro quando cito "nosso estilo de vida". Buscamos fazer tudo igual, de maneira organizada, planificada, monótona e com pressa, mas para quê? Se isso não vem servindo para nos dar o absoluto conforto que desejamos com a obtenção de produtos, se ele não impede que fiquemos angustiados todos os dias a caminho do trabalho (se você ainda não sentiu essa angústia, vai sentir um dia), se não protege nossos filhos de sentirem a mesma angústia durante toda sua vida, estamos apenas promovendo a economia para ela mesma. O meio pelo meio, sem fim, sem luz no fim do túnel, sem esperança em um futuro melhor.

Enfrentar o terrorismo corporativo, mercadológico, econômico, correr sob o terror de morrer todos os dias, é o preço que você paga para ter tratamento exclusivo, ter oportunidade, usufruir benefícios agora mesmo, fazer alguma coisa já, ter o que é seu, aprimorar sua carreira, obter vantagem, ter acesso ao bem-estar, ter a possibilidade de ser valorizado, ganhar poder, ser maior que os outros e dar a si mesmo um futuro melhor. E todos esses valores só podem ser obtidos neste jogo único, uma cultura única de competição desleal contra o próximo, um jogo com cartas marcadas, no qual sempre haverá perdedores, excluídos, marginais. Mas você, você é um vencedor. Ou não é?

A quem teve a paciência de ler esta ladainha insípida, descontinuada e amalucada, um regalo: um trecho do documentário Koyaanisqatsi, do diretor Godfrey Reggio, de 1983. A palavra vem da linguagem indígena Hopi, e significa "vida fora de equilíbrio". Enjoy!

A vida em xeque, ou terror cotidiano (parte 2)

[link para parte 1]

Nesse meio tempo, compramos para obter finalmente o valor de nosso trabalho e de nossa vida. E vale? Uma jornada teórica de 8 a 10 horas por dia, mas que muitas vezes se estende por 12, 14 horas, com 1 hora para se alimentar e tentar aliviar a tensão. Se o dia só tem 24, de quantas horas você precisa para dormir? 7, 8? Lá se foram então 17 delas, levando em conta um tempo médio de permanência no trabalho de 10 horas e sono de 7. Nas 7 horas restantes você precisa em média de 2 para acordar, tomar um banho, vestir a roupa, quem sabe tomar café-da-manhã, obter um transporte para ir ao local em que trabalha e embrenhar-se em um trânsito sem fim para tal. 5 horas é portanto o que sobra para estudar, ver seus amigos, cuidar de seus filhos, amar seu (sua) companheiro (a), entreter-se com leitura, música, cinema...

Mas, ah, que alívio! Existem os finais de semana! Dois dias inteiros pelos quais aguardamos nos outros cinco. Neles podemos fazer em abundância tudo aquilo que só tínhamos 5 horas ou menos para realizar, e o melhor: podemos comprar! Para no início da próxima semana "útil" continuarmos extenuando nossa saúde em tarefas repetitivas, com exigências exdrúxulas e prazos minúsculos. Neste momento pensamos nas férias remuneradas... um mês inteiro para fazer tudo aquilo que tínhamos antes 5 horas e depois 2 dias para fazer. Vinte dias, talvez, pois está meio difícil para as empresas aguentarem trinta dias inteiros sem você. Quinze dias, uma semana? Ok! Para depois recomeçar o ciclo inteiro. É esta a terra prometida de cada vez mais abundância e cada vez menos trabalho que nosso estilo de vida nos promete? Não seria pouco evitar a morte para antecipá-la?

Em uma sociedade que superestima a vida com cirurgias plásticas, técnicas de rejuvenescimento, vitaminas, remédios anti-radicais-livres, calmantes, livros de auto-ajuda que dão a fórmula do bem viver e do sucesso, com programas de televisão que nos ajudam a esquecer diariamente todos os nossos problemas, igrejas que pregam uma vida póstuma divinamente melhor, desde que você realize o bem por eles imposto (pois você é um pecador), é realmente muito fácil temer a morte. O terror que sentimos todos os dias é maior ou menor que a palavra "terrorismo" que ouvimos na televisão todos os dias? Essa invenção recente apenas materializa o mesmo medo que sentimos, como uma maneira de reforçar a preservação desse estilo de vida a todo custo. Ora, agora temos inimigos de fato para os quais direcionar nossa preocupação, para nos distrair do inimigo rotineiro.

O pensador francês Jean Baudrillard, que ganha muito dinheiro para divagar como faço agora, mas com muito mais embasamento, categoria e lógica, publicou um artigo no jornal parisiense Le Monde, em 2 de novembro de 2001, pouco depois do espetáculo catastrófico das torres gêmeas, em Nova Iorque. Um dos trechos exemplifica bem essa confusão imensa que você leu até agora:

"Isso vai muito além do ódio ao poder global dominante por parte dos deserdados e explorados (...) Este desejo maligno [de destruir o poder] está no próprio coração daqueles que partilham os benefícios desse poder. Uma alergia a toda ordem definitiva, a todo poder é felizmente universal, e as duas torres do World Trade Center encarnaram perfeitamente, em sua duplicidade, essa ordem definitiva. (...) É muito lógico e inexorável que o crescimento do poder exacerbou a vontade de destruí-lo. E o poder é cúmplice de sua própria destruição".

"Quando a situação é monopolizada por um poder global, quando este lida com uma condensação formidável de todas as funções por meio de maquinário tecnocrático [a tecnologia] e hegemonia ideológica absoluta (pensamento único), que outro meio há além de uma reversão terrorista da situação? Foi o próprio sistema que criou as condições objetivas para essa distorção brutal. Tomando todas as cartas para si, ele força o Outro a mudar as regras do jogo". (continua)

A vida em xeque, ou terror cotidiano (parte 1)

[Jogo em 3 partidas com um presente no final]

Correr, terror, morrer. Não é apenas o som dessas palavras que as aproxima: seu sentido, sua função e sua combinação também. No texto que se desenvolve em três partidas, tentarei unir essas palavras em um ciclo inteligível para discutir nosso atual estilo de vida. Digo "nosso", pois se você tem condições de acessar a internet para ler este blog, saberá do que se trata.

Trabalhei em uma redação de marketing por 2 longos anos de minha vida e não preciso de catálogo ou pesquisa para enumerar com exatidão as palavras mais usadas em meus textos nesse período: "você", "exclusivo", "oportunidade", "benefício", "agora", "já", "faça", "ter", "seu" ("sua"), "carreira", "bem-estar", "vantagem", "possibilidade", ", poder", "acesso", "valor", "aprimoramento", "melhor", "maior" e "futuro". Vendi aos incautos todas essas palavras tempo suficiente para saber que o objetivo era vender apenas o significado, o valor irreal da idéia que as acompanha. No entanto, na empresa específica em que trabalhei, nunca me foi permitido mencionar a palavra "preço". Esta é uma palavra perigosa em marketing e talvez esteja exatamente aí a chave da questão.

O que vem à sua mente quando lê agora a palavra "preço"? Valor? Dinheiro? Pois eu me permito então adicionar outras palavras que dão seqüência a essa corrente, desta vez em ordem: salário, trabalho, sobrevivência, educação, criação, nascimento. É mais ou menos o caminho que nos é pedido, sugerido ou imposto seguir por nossos pais, pela televisão, pelo governo, pela opinião pública, pelo consenso ou, como eu prefiro, convenção geral. É o caminho para se equiparar ao valor dos produtos à venda, para ter direito a eles, mercadorias/idéias que trazem conforto. Quem segue por outro caminho por opção ou por falta dela é costumeiramente rotulado de marginal, excluído, escória. Voltarei a isso mais tarde.

E qual é o preço de sustentar essa coluna, ou essa escada, se assim a seqüência decrescente lhe parecer? A resposta está no seu dia-a-dia. Neste momento, você está lendo este texto, pensando nele, mas é muito provável que um segundo pensamento assombre a sua mente com uma afirmação velada, confusa, misturada com um sentimento instintivo: "eu poderia estar fazendo algo melhor", ou "ler é bom, mas quero acabar logo com isso para fazer outras coisas". Todo clichê tem razão de ser, e "tempo é dinheiro" se aplica bem aqui. Se você está no local de trabalho, tem tarefas a concluir, para ganhar dinheiro, para não perder o emprego. Se você estuda, tem outros textos a ler, projetos a esboçar, matérias em que se aplicar, para poder trabalhar, para ganhar dinheiro. Se você não faz nem um, nem outro, nem os dois combinadamente, talvez tenha urgência em fazê-lo, para estudar, para poder trabalhar, para ganhar dinheiro e comprar produtos, guardando algum para sustentar seus filhos, que com sorte terão condições, então, de realizar exatamente o mesmo ciclo antes de morrer.

Morrer. Se temos medo de perder o emprego, temos medo de não obter meios de sustento, de alimentação, temos medo de morrer. Somos aterrorizados todos os dias com a idéia de que se não mantivermos as engrenagens rodando, se não susentarmos (com nossa escalada em direção ao valor das coisas) a economia vigente, vamos morrer de fome. Se ouvimos no noticiário que um governo estatiza suas empresas, temos medo do que ameaça nosso estilo de vida, que pode nos impedir de repetir o que fizeram nossos pais, o que levará à morte. Então, corremos. Disputamos corrida com a morte, mas o que há para nós na chegada? A morte. (continua)

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Jogada de abertura


Sou um admirador de xadrez. Não um enxadrista, não um jogador amador… no máximo um jogador iniciante: mas um admirador de xadrez. A quem já teve o prazer de observar um tabuleiro e ver mais do que um jogo velho, de velhos, para velhos, dedico portanto esta singela abertura. Sejam bem-vindos também os analfabetos nesta arte, pois estão em um nível bem próximo do meu. Para explicar brevemente o título deste blog, uma referência wiki, bem à moda internetiana:

In chess, a passed pawn is a pawn as to which there are no opposing pawns to stop it from advancing to the eighth rank.

Tradução livre:
No xadrez, um peão passado é um peão que não possui peões adversários em condições de impedir seu avanço à oitava linha.

O peão, meus caros, minhas caras, é a peça mais fraca em um tabuleiro de xadrez. Seu valor é geralmente a medida mínima, que serve de rereferência para as demais peças, o que faz um cavalo valer três peões, uma torre, cinco, e assim por diante. É desta maneira pois ele pode se mover apenas um quadrado por vez (exceto na primeira jogada, em que é possível andar duas casas), sempre para frente e verticalmente, a não ser quando ataca outra peça - único momento em que muda seu curso monótono e retilíneo para capturar diagonalmente.

Quando se torna um peão passado, como mostrado no exemplo acima, podemos dizer que ele atingiu um nível razoável de liberdade e independência, além de uma posição privilegiada, pois ataca as linhas em que geralmente ficam posicionadas até a metade do jogo algumas peças de grande porte: a torre, o rei... Dispensemos comentários sobre esta que é a principal peça do xadrez, a que deve ser encurralada para se vencer. Assim, um peão passado exerce influência direta em momentos mais críticos da partida e adquire ares mais ameaçadores.

O auge na vida de um peão é a promoção. Quando ele atinge a oitava linha (pois um tabuleiro também possui colunas), a contar de baixo para cima, na perspectiva do jogador que faz o movimento, ele pode se transformar em qualquer peça do tabuleiro que servir ao propósito, exceto o rei: cavalo, bispo, torre ou rainha. Na maioria dos casos, o enxadrista prefere transformar sua peça em uma rainha, pois esta tem o poder de se movimentar e capturar em longas distâncias, por todas as linhas, colunas e diagonais - a peça mais valiosa.

Se até agora não foi possível perceber que o xadrez é uma metáfora para a vida, peço que se esforçe um pouco, pois esta é exatamente a parte que gostaria de compartilhar com os possíveis leitores, ou comigo mesmo, se o único leitor destes escritos for. Porém, é imprescindível ter uma lição em mente: o peão deixa de ser a peça mais fraca do jogo não só quando é promovido, mas quando está bem estruturado em relação aos outros peões, as peças encontradas em maior número neste tabuleiro. Portanto, sua força vem basicamente da união.

Deixo claro que a metáfora, que será construída lentamente por mim, pelos futuros colaboradores e pelos leitores, serve para todos os aspectos que me interessam e espero interessá-los: cultura, arte, filosofia, política, ciência, espiritualidade… é tudo o que permeará este blog e, com sorte, é o que conseguirei transmitir, com a ajuda de todos, de maneira que toque o coração de quem lê. Dispor palavras, fazer que com isso seja sentido e promover relativa união é meu desafio, um estudo, um objetivo: o xeque-mate. Qual é o seu?