segunda-feira, 26 de novembro de 2007

O Dez Perfeito - Oráculo da Morte

Pintura de Hyeronimous Bosch (1450-1516). No site, o título atribuído é Green Hell, mas eu realmente não sei. http://www.artchive.com/artchive/b/bosch/tempt_c.jpg

--

Nota-pretexto pré-textualmente concebida (sempre desnecessária): fui acordado pelo texto que segue às 7h da manhã do dia 19 de novembro de 2007, debaixo de uma das tempestades mais assustadoras dos últimos anos. Em meu devaneio, 19/09/2007 (é assim mesmo que está no manuscrito, apesar de ser o mês 11) somava 10, de alguma forma numerológica bizarra, o que explica o título não menos. Aprecie, se puder.

--

Nações valerão em ações o seu peso geográfico. De repente, tive a impressão ou mesmo visão de uma grande recontagem. O mundo não mais pode ser calculado como antes, sob a mesma matemática, as mesmas variantes, nada é como dantes. Uma diabólica (jagablântica, como na 'visão') bolha de dinheiro de metal sobre a qual flutuamos, de certa forma, ou até uma ou algumas imensas ampulhetas representando ou sendo o escoamento de toda nossa riqueza, tudo dividido agora em massas maiores, pedaços maiores, cifras maiores, em importâncias diferentes [relendo e relembrando a sensação, entendi o que eu queria dizer: é como se o molde, a idéia da quantia de 20.000.000, por exemplo, mudasse. Vinte milhões não cabem mais na lacuna a que essa importância pertence e se transfere a um bolo muito maior. Recontagem total]. Ou quem sabe uma hierarquia: 1 - América 2 - Europa 3 - Ásia ou Asiáfrica ou 4 - África 5 - Oceania ou 3 - Asiafricaustrália. Devidamente divididos pela grana incalculável que extrapola o tamanho físico das cidades, estados, países e continentes, vivemos sob novas regras em que velhas contas já não se aplicam a nada. Como se passássemos de uma lógica decimal a uma centesimal, como bem poderia ser uma milesimal ou assim por diante. Um salto nefasto na realidade gritante de um planeta-homem que finalmente mostra sua verdadeira e grotesca face, onde a sensação é não mais que a única de ser arrastado na pressão da enxurrada de valor digital, virtual, simbólico, mas nunca tão real, palpável, físico, uma torrente originada na mesma tempestade, a tempestade que inaugurou o dia de hoje, com relâmpagos e trovões horripilantes.

Que resta após esta delirante revelação? Que incentivo há em lutar contra a força descendente de milhões de milhões de grãos a passar pelo opressor gargalo da ampulheta do fim de tudo como conhecemos, o fim como desejamos, queremos e fizemos por merecer? Como resistir a desistir e chorar ajoelhado perante tal força? Como dormir após ser acordado com tamanha violência, após ir dormir sob tamanha violência das pálpebras a se fechar em rendição absoluta ao jugo do peso da obrigação de obrigar-se a viver? E viver seria tão somente existir, não tivéssemos a isso atribuído a maldição de fazer segundo a lógica do todo. Viver é fazer, trabalhar para merecer, competir para sobressair, escalar para atingir, subir para respirar, engalfinhar-se para existir, matar para resistir, ficar para testemunhar, escrever para documentar, dizer para ninguém ouvir, andar para ultrapassar, saber para dividir, olhar para segregar, comer para sentir, correr para se garantir, e bater, e bater, se debater no que o diabo chamaria de lar.

Sem olhar para, mirar para, sem saber para trás o já escrito, a visão aos poucos se dissipa. Mas nunca esqueceremos, eu e você, o terror dessa manhã. O terror repentino de ser esse nojo de ser... humano.

Senti-me na correnteza de grãos
e isso nunca vou esquecer

Todos se esquecem do conforto
e da beleza de desistir
[essa idéia renderá outro texto]

Tente e desista de algo hoje
abandone essa luta vã

E aprecie o espetáculo do fim
seja bem-vindo ao fim

Nos livros, nos filmes e novelas
a visão sempre faz sentido

Essa não

Tem gente que tem um olho que vê
E o meu hoje viu
Veja.

Terror feliz. Temor feliz. A existência de deus ou seu contrário? A existência de um ser em mim. A seqüência de mim, que ainda assim ainda me sou e saio. O fim.

--

Música que estou ouvindo inexplicavelmente repetidamente: Blur - Coffee and TV.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Afroveitem! (colhido fresco)

Chamem como quiserem
mas não se esqueçam
não se esqueçam

Amem quanto puderem
mas não se percam
não se percam

Riam quando brincarem
mas não ofendam
nem se ofendam

Peçam se carecerem
mas endureçam
endureçam

Façam como fizerem
mas não se esqueçam
não se esqueçam

[imagem: www.ism-sweden.org/page.php?category=6&id=140]

gueto

n substantivo masculino
1 na maioria das cidades européias, bairro onde todo judeu era obrigado a residir
2 Derivação: por extensão de sentido.
bairro de uma cidade onde vivem os membros de uma etnia ou outro grupo minoritário, freq. devido a injunções, pressões ou circunstâncias econômicas ou sociais
3 Derivação: por extensão de sentido.
todo estilo de vida ou tipo de existência resultante de tratamento discriminativo
Ex.:

etimologia: it. ghetto (1516) 'região onde, em algumas cidades, os judeus eram obrigados a morar', fig. 'ambiente fechado, não acessível'

Agora que já comecei com essa péssima, mas sempre útil idéia de utilizar o pai-dos-burros para explicar alguma coisa, gostaria de propor um pensamento, aliás um pensamento colhido fresco, pois o tive em um momento da manhã de hoje, acordei e escrevi.

A ocasião não poderia ser mais propícia: estamos em um dos feriados mais prolongados da história do Brasil, que culmina no Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro. Ouvi gente criticar a nomeação da data, dizendo que ela é mais discriminatória que lisonjeira e mais separa do que une. Mas, poucos dos que agora estão em mini-férias em uma dessas praias lotadas da vida estão reclamando, convenhamos, né?

Apesar do sentido dicionarial mostrado acima, entendemos gueto mais por seu uso estadunidense, em referência a bairros e regiões de tal país em que vivem, em maioria, pessoas de pele escura. Sim, escura, mas sei que até um espectro de cores pode ofender, em tempos de palavras comedidas quando referentes a minorias... Tentarei ser o mais respeitosamente falso possível.

Mas, no Brasil, o gueto é o negro ou o pobre? Se considerarmos que o pobre pode se considerar rico (espiritualmente? culturalmente?), é incorreto chamá-lo de pobre, politicamente incorreto. Mais adequado seria "financeiramente desprovido"... Esses desprovidos apenas financeiramente, mas cheios de riqueza popular, são um gueto de milhões. Aliás, são um gueto que é maioria em um país que tende a fechar os olhos para desigualdades.

Segundo este site (sei lá quais as outras milhares de fontes):

São 56,9 milhões de pobres no Brasil, sendo 24,7 milhões de pessoas na extrema pobreza. Quem são essas pessoas?

a) Crianças (mais de 50% das crianças com até 2 anos de idade são pobres);
b) Afrodescendentes (representam 45% da população total, mas 63% dos pobres e 70% dos indigentes);
c) Nordestinos ou moradores das regiões metropolitanas do Sudeste;
d) Membros de famílias chefiadas por adultos de baixa escolaridade; e
e) Membros de famílias chefiadas por trabalhadores autônomos ou por empregados sem carteira assinada.

• Aqueles que compõem o 1% mais rico da população brasileira controlam aproximadamente 10% do PIB nacional, a mesma proporção que é controlada pelos 50% mais pobres da população.

Acho que é o suficiente... Para mostrar, talvez, que, já que queremos tratar com palavras "adequadas" os nossos maiores e mais gritantes problemas, então eu proponho que se PARE de hiposcrisia ao chamar de gueto algo que de tão enorme só não vê quem é cego, deficiente visual ou visualmente desfavorecido...

Agora que nos EUA a cultura do gueto negro é dominante (no Brasil, alguém já ouviu falar de baile funk?), como chamar a cultura atribuída aos novos financeiramente ligeiramente menos abastados? Pois se uma cultura é retirada de seu lugar de origem e comercializada, um produto mesmo (fonográfico ruim, no caso), o que acontece no lugar de origem? Ou a pobreza é, neste momento, uma exclusividade dos culturalmente involuntariamente "não-obtenedores"? Sim, mesmo os não-pobres que não têm cultura agora são os realmente pobres... Será?

Ainda que essa música negra (calma) ou afrodescendente (!!!) seja adaptada aos ouvidos brancos... ops!.. euro-puro-similares, não se pode ignorar que hoje o gueto seja chique, mas no plano das idéias. O gueto é cada vez mais gueto na realidade prática, e o abismo não pára de crescer. Mas é fácil fingir-se interessado pelas condições sociais horríveis em que se encontra a maioria da população apenas pegando um traço cultural legitimamente popular e usando o PIOR dele, como a música fúnqui ou o hiphop americano que preconiza usar dinheiro para se limpar e tratar mulheres como objetos.

Faz sentido, já que antigamente ser preto, negro, ou afrofodido era ser escravo, por mais politicamente correto que seja esquecer tal fato, e ser pobre também o é... Mas como somos todos escravos voluntários de uma mesma máquina-maravilha-mercado (um dia inventam uma sigla-beleza como 'MMM'), então ser alegremente comandado é politicamente correto nessa lógica divertidamente ilusória, na qual basta inventar nomes eufemísticos para segregar respeitosamente.

Mas quem sou eu para falar? Apenas um afro-russo-pardameríndio-marrombranco-euro-brazuco-esportuga... Ai, ai... Vai ser foda quando quando a classe média brasileira se encher, ou melhor, se ofender por ser média, mediana, medíocre, pois além disso já é medrosa e maldita. Esses sobre-povo ou nata não-ralé, eu, tu, eles. Na minha opinião, somos apenas possuidores das maiores inutilidades domésticas já inventadas, felizes portadores de nada. Mas, daqui a um ou dois parágrafos eu volto a falar disso.

Então temos os brancos ex-colonizadores, burrodescendentes ou plutodependentes, os negros ex-escravos, afrofodidos ou de invisibilidade escura, os amerindiotas, esses não só invisíveis como inexistentes, os nordestinos (oh, meu deus, acabaram meus eufemismos e tucanismos estúpidos), esses que descendem dos branco-puros holandeses, que no entanto são tratados como bichos no sudeste no Brasil.

Opa, alguém falou em bichos? Não, espere. Eles são "seres-senscientes-não-humanos". Ah, faça-me o favor! Chega! Os animais não se importariam em ser chamados simplesmente de animais se apenas os tratássemos melhor... Mas... Não é esse então o problema?! A maneira como tratamos um ao outro? Terei eu descoberto a pólvora? Serei eu um ser superior (desculpem, não quero segregar ninguém) ao me preocupar em tratar bem as pessoas, animais e coisas, em vez de criar termos infelizes para dissimular uma preocupação?

Então, o preconceito só depende da terminologia adotada, mas é sempre correto acobertar nossa indecência ou politicar nossa correteza. É melhor apagar da memória o que é inoce-inofe-incapa-indesejável, não se misturar, não mencionar, não falar sobre e principalmente não ter nenhum contato físico com essa pobreza da qual temos nojo, mas que adoramos ver em filmes-polêmica, polefilmes, polelículas...

Me admira que as mulheres ainda sejam chamadas assim, ou os judeus, enfim, já que hoje toda minoria é protegida gramaticalmente sem querer ser, uma proteção-violência ignorante, em nome da propaganda, das vendas, das marcas. Eu posso ajudar as empresas inventando o "ser humano não-animal do sexo forte feminino votante e assalariado independente", vulgarmente mulher, ou o "grupo minoritário-majoritário mundial étnico-religioso-cultural israelo-referente", popularmente judeu. Ora, e quem não quer vender (enfiar, atochar) seus produtos para mulheres e judeus? E para as mulheres de judeus?! (Controle-se!)

Somos todos E SÓ fatias gordas, gostosas, deliciosas, prontas para consumir. É a mercadelícia da pluralidade desigual. Afroveitem!!!

--

http://rapidshare.com/files/69929490/AllanZi_-_Normal.mp3