sexta-feira, 14 de junho de 2013

O cassetete invisível



Olhos abertos, sem querer que estejam. Dispara, no pulmão, a respiração curtinha; no coração, o aperto se aperta; na garanta, um nó cego. Tem início o dia do cidadão de bem, feliz por poder ir e vir durante horas no trânsito lento de luzinhas vermelhas, ter a chance de comprar bugigangas na sexta-feira negra, por desfrutar das virtudes culturais coloridas de uma metrópole cinza. Ele está feliz por ter um emprego de 8, 9, 10 horas diárias onde pode ser verdadeiramente falso e distribuir alegremente sorrisos amarelos, que, por entre os dentes, dizem baixinho, sem alarde: "socorro". 

O habitante da cidade está tranquilo: já tomou a pílula de hoje no café, enquanto passava a mão na cabeça do filho pequeno, dizendo "comporte-se, tenha juízo, seja bonzinho". É tudo o que ele sabe ensinar. É tudo o que aprendeu. E parte para o dia sem medo de ter medo, olhando para os lados, prevenido contra o outro e tudo o que pareça estranho, ainda que seja o próprio espelho. "Está tudo bem, mas é bom ficar esperto", pensa.

As cobranças são naturais para esse ser civilizado, ele tem que ficar de olho na meta. É o pão que dela depende. Ele tem um alvo a atingir, mas também um pintado na testa. Esse ele nunca vê. Não precisa, afinal, é só não se virar, nem se levantar, ficar abaixadinho, mesmo, aqui atrás da divisória do cubículo, que tudo fica em paz. Não está na mira, nem atira, não fica no meio do que não lhe pertence, enquanto se apropriam de tudo o que poderia ser seu e de todos.

Volta pra casa, sua propriedade, e passa um tempão com a família, o que já é uma tradição: 2 horas. Depois de um banho morno e um beijinho na esposa, dorme o sono dos justos, não sem antes dar um traguinho rápido, ainda que desesperado, em um álcool qualquer. É só pra não tomar duas pilulinhas em um dia. Está relaxado, mas seu pesado sono não tem sonhos. Pesadelos também não tem, mas ele sabe que, se não mantiver religiosamente essa rotina, ele pode vir. E ele vem: olhos abertos, sem querer que estejam.

Quem se revoltaria contra uma vida tão indevida? 

Quem ousaria se levantar pra por o dedo na ferida? 

Quem se importaria em mudar quando a inércia é a medida?

Você e eu.

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