segunda-feira, 16 de abril de 2007

Não dá

Agora eu queria começar a escrever. Ia comentar o último livro que li, quantas idéias interessantes... não posso mais escrever. Tocou o telefone, era um vendedor que sabia o meu nome, ele me disse que a oportunidade que ele tinha reservada especialmente para mim era única, imperdível, é uma coleção dos maiores best-sellers de todos os tempos, eu pagaria por eles em prestações levíssimas no cartão de crédito, falei que pensaria a respeito, afinal todo mundo já leu, não sei se quero ficar de fora. Eu ia até tentar escrever. Estava com um pensamento bastante fértil na cabeça, sobre originalidade e o contrário dela, como tudo hoje em dia é reproduzido em massa... não posso mais escrever. Deixei a televisão ligada, está passando uma matéria que me chamou tanto a atenção, sobre um artista famoso da antiguidade que vai ter suas obras estampadas em camisetas e bonés, tudo em prol das crianças do Camboja que passam fome, parece que foi idéia de um estilista bastante conceituado na sociedade, que já pintou quadros nas ruas da Europa, passou dificuldades financeiras em sua juventude, fico pensando se não seria essa uma nova forma para a arte, que funciona, uma coisa tão acessível e ainda por cima com um propósito tão bonito, será que eu quero ser mesmo artista, pois não me vêm essas idéias inovadoras à cabeça, devia expandir os meus horizontes, como a própria personalidade que fala na televisão diz que todos têm de fazer. Será que vou ter tempo de escrever, ainda? Tantas vozes gritando dentro de mim desde o sonho que tive na noite passada, alguém me dizia para ficar de olhos abertos para a manipulação, outra voz falou em escravidão, isso seria material interessante para um texto... não posso mais escrever. Lembro-me, agora, tenho que procurar emprego, pois o dinheiro que ando ganhando não é digno, nem suficiente, nem o jeito como eu o gasto é bom, eu não trabalho o montante de horas necessárias e nem tenho um emprego direito e justo para poder comprar as coisas que o vendedor do telefonema me disse que preciso ter, fora que o trabalho enobrece o homem e ando me sentindo tão longe da nobreza, estaria mais perto dela com um terno e uma gravata, há empresas com propostas tão claras para melhorar a vida das pessoas, eu devia trabalhar numa delas ao invés de ficar me masturbando com esse suposto trabalho, afinal, não pode ser considerado trabalho algo que me deixa aí solto para fazer meus próprios horários e as coisas que eu gosto, poder falar das que eu não gosto, isso seria muito egoísmo, ninguém tem o direito de ficar fazendo seus próprios horários enquanto os outros ralam o dia inteiro, não têm tempo nem para pensar, comer, ver os amigos e a família, os filhos, respirar, se comunicar, amar, ler, ir ao cinema, ao teatro, estudar, e desmaiam em suas camas, à noite, pois ir dormir simplesmente quando se está com sono é realmente coisa de vagabundo. Mas será possível? Tenho tanta coisa importante para me preocupar que não estou conseguindo escrever! Queria falar do amor, das mulheres, hoje conversei com uma garota linda no ponto de ônibus, ela veio me pedir uma informação sobre o itinerário e acabamos trocando umas palavrinhas, ela é muito inteligente, gosta de poesia, estava indo para a faculdade (ela faz o curso de letras) fiquei extasiado, e que graça ela tem, que olhar interessante, pena que não pude conversar mais com ela, foi tão rápido, o ônibus dela passou e... não posso mais escrever. Não posso, imagine, daqui a pouco estou com 30 anos, preciso me casar, dividir meus bens com uma mulher, não precisa ser uma mulher incrível, só alguma que satisfaça por um tempo as minhas necessidades fisiológicas, lave minhas roupas com amaciante, faça uma comidinha gostosa, seja simpática, hora ou outra ela me dá um ou mais herdeiros, como na vida normal, assim, como deve ser, a gente vai poder exibi-los nas festinhas dos nossos queridos amigos, vou adorar elogiar os filhos deles, apesar de eu achar aquele ali um pouco mimado, mas, bom, ele tem o direito de ter tudo aquilo que os pais ralaram a vida inteira para dar a ele, tantos brinquedos caros, escola particular, isso é que é uma criança de sorte, não precisa ter contato com aquelas pobres e desgraçadas crianças do Camboja, ou mesmo as daqui, elas vão crescer seguras num condomínio fechado, ah, como é bom poder ter um pouco de paz, apesar de que vai haver muitas brigas no meu casamento, provavelmente, dependendo da mulher e do meu estado de espírito (ela pode ter olhado diferente para aquele meu amigo cafajeste, será que ela está me traindo?) podem até ser aquelas de quebrar coisas, quando os vizinhos chamam a polícia, mas taí uma coisa perfeitamente normal numa relação homem/mulher, é melhor do que ficar por aí solteirão, não pega bem. Juro que estou tentando escrever. Imaginei uma tirada cômica qualquer, alguma paródia da vida cotidiana, algo que fizesse o mais duro dos homens rir, mas ao mesmo tempo estou checando meu correio eletrônico, um amigo enviou-me uma montagem hilária de fotos, estão tirando sarro de uma mulher gorda que tenta entrar num carro pequeno, há, há, há, mal consigo me conter, que pretensão a minha querer escrever algo cômico, já tem tanta gente criativa por aí, olha só, tem outro, meio pornográfico, um rapaz tentando convencer uma garota a praticar sexo oral com uma sacada tão perspicaz, há, há, há, estou até chorando de rir, isso é que é humor, eu devia mesmo era criar uma página na internet para mostrar esse tipo de coisa, todas as minhas besteiras, talvez eu fique até famoso por isso, quem sabe, essa era da informação dá tanta liberdade para as pessoas se expressarem, como nesses blogs, é isso, um diário público “virtual”, seria tão prático, eu não ia precisar me preocupar tanto em escrever, seria só colocar o que aconteceu no meu dia, praticamente uma crônica cotidiana pessoal, isso sim é democracia, todo mundo tem seu espaço na grande teia mundial. Até comecei a esboçar umas linhas, mas, ah, tanta coisa para pensar, tantos projetos de vida. Nem sei se quero mais escrever, acho que quero, mas está ficando tarde, afinal de contas, escrever não vai me levar a lugar algum, ninguém vai ler, mesmo, o que vale é meu sucesso individual, o progresso de cada um, preciso comprar um lugar só meu, preciso chamar tantas coisas de “só minhas”, isso é que é importante, progredir na vida, vencer, tem gente que não vê isso, era sobre elas que eu queria escrever, na verdade, sobre essas pessoas medíocres que não aprendem nada, não sabem aproveitar o dia, a vida! Eu bem sei, mas estou vendo que hoje não vou poder escrever.

AllanZi - 17/09/2003

3 comentários:

Anônimo disse...

oi,
gostei do texto... como vc disse "Estava com um pensamento bastante fértil na cabeça, sobre originalidade e o contrário dela".. conseguiu fazer isso...
parece q vc nao fala de nda e ao mesmo tempo fala de mta coisa... é interessante...
bj
Ju

Anônimo disse...

:)
só pra mostrar q estou lendo...
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bjs

Anônimo disse...

Segunda-feira, 16 de Abril de 2007, Uma Odisséia No Encéfalo-Espaço!!!