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Se fôssemos católicos mexicanos (por que não?), estaríamos comemorando a morte do Papa. Explico: nesta cultura, a morte é tratada com festa, como uma celebração à vida do ente que acaba de deixá-la. Deixá-la, diga-se, nos corações e nas mentes de quem o conheceu, para deixar também seu legado, sua sabedoria, sua velhice.
Essa relação é resultado de uma tradição herdada dos povos nativos que viviam no país antes da chegada dos europeus. Os nahua, os otomi, os purepecha e os totonac, povos pertencentes às civilizações maia e asteca, acreditavam que uma vez por ano, no Dia de Finados, os mortos vinham visitar os vivos. Isso provaria, na concepção deles, que os mortos viviam em um mundo paralelo bastante semelhante ao dos vivos e que era perfeitamente possível o contato entre os dois. Na cultura desses antepassados, a crença era motivo de festa. E essa tradição permanece até hoje entre os mexicanos. Música, decoração especial e o melhor da culinária local fazem parte da comemoração. Nas casas, costuma-se armar um altar em homenagem aos falecidos. Mas a tristeza passa longe.
Um povo que lida bem com a morte, vive melhor. No entanto, aqui por estas bandas, aqui no quintalzinho dos States, medo. Cá como lá e na velha "mãe" Europa. Um luto medroso pela morte da americana Terri Schiavo, porém tímido e fugaz, e um luto apavorado e grandioso diante da figura esbranquiçada daquele que tão bem lutou contra a pecaminosa liberdade.
No caso de Schiavo, o que sentimos foi a dor de um rosto inexpressivo, que nos é indolor, ao mesmo tempo. É uma dor que não pode mais distribuir sorrisos falsos, sinais de positivo para as câmeras, posar com o presidente intrometido para fotos de agências de notícias pasteurizadas. É a dor da morte sem máscara, sem o filtro da ciência que tudo pode, tudo conserta, tudo limpa. Morte da qual não se pode fugir, o que é tão natural. Morte, e nada mais.
Crescente medo da morte, um irracional pavor do fim das coisas, como se acordássemos todos do torpor tecnológico que nos faz (nós, seres virtuais internéticos) parecer eternos. Estranhamos a velhice como uma doença incurável. Doença não é. E a cura, não há Bill Gates que encontre. Como os republicanos dos EUA no caso Terri, queremos fazer da morte um pecado. Como os democratas dos EUA, deixamos a morte morrer de fome, como se não fizesse parte de nós, e achamos assim que ela irá embora, sem peso na consciência por tamanha crueldade.
Uma semana curta para tanta choradeira. E continuamos a ignorar o fundamentalismo explícito em ambas as situações: a morte lenta de Schiavo, o triunfo do moralismo com que os EUA governam a si próprios e estendem para o resto do mundo com seus dedos elásticos. A morte do Papa, o triunfo de uma das maiores e mais bem sucedidas jogadas de marketing (todo seu papado) já feitas pela Igreja desde sua fundação, uma insituição que consegue se manter como a mais antiga nesta aura mística e dourada e abrir caminho pelos anos 2000 com sua cúpula pontiaguda.
O que não se percebe é que a lenta morte do Papa (desde que ele começou a morrer por aí na televisão e nos jornais), que durou anos, foi o rápido renascimento do fundamentalismo religioso romano. Vejam que não há Cristo na Igreja Católica Apostólica Romana. E nossa Roma tecno-bélica agradece: impede a morte natural para impor a morte matemática e numérica no Iraque, como se ao presidente do mundo coubesse decidir os destinos de todos, como se fosse... Quem? E a eutanásia quem quer é o povo, mas nem isso pode.
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Baixem música de graça: Sonolento, do AllanZi que vos des-fala. Canção (mp3) e letra (txt).
2 comentários:
Eu deveria ter morrido ontem.
Oque dizer de uma instituição que não morre há quase dois mil anos??? Oque dizer de um país que impõe a morte/eternidade alheia e tem medo da sua própria sentença???
Pobres imortais... têm o elixir da juventude em sua própria ignorância!
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