quarta-feira, 2 de agosto de 2017

_raiz_

Não há templo
estufa ou bálsamo
que conserve a fugacidade da paixão

Há algo por baixo, porém
que vem à tona
se temos força
e alma pra buscar

Um amor enraizado
mais terra firme
que céu incerto

De sabor picante
raiz forte
para os paladares mais distintos
mais sábios e experimentados
naquilo que gra-ti-fi-ca

O gosto da eternidade
não sedimenta
pois se move em sentimento puro
do núcleo ao magma vital

É dessa quentura que bebo
quanto sinto o calor
de ter e ser você e eu

É esse gêiser ancestral que resiste
e nos propele a novas alturas
quando pensamos ter chegado ao fundo

É esse amor terroso
que aprendi ser origem
do vermelho da rosa
na superfície

Destaco essa flor quantas vezes precisar
rasgo-me em seus espinhos
se assim for, não importa
pra te dar repetidas vezes
ao infinito

Porque agora sei do que se alimenta
e prefiro dar de comer ao que somos
que perfumar o que podíamos
e nunca teríamos sido

Amo-te radicalmente

domingo, 23 de abril de 2017

Carranca

Passar por você
quando veste sua carranca
é de cortar o coração

Sei que a carrego também
todos as temos
e que a minha presença
às vezes é cruel

Mas por que carrancamos?

O outro
nunca vai resolver o problema
que é do um

E nosso problema essencial
é não reconhecer o um
no outro

(Só abordamos o mundo
diferentemente. Por que
não podemos respeitar
as abordagens e só?)

Quando entendermos
que não é preciso
enviar sinal algum

Saberemos que a mensagem
já está entranhada em nós

Somos um
e só há outros
para que vejamos no espelho
ao mesmo tempo
o problema e a solução
de tudo

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

"Olha pra frente!"

É o que falo quando nosso Pedro, de 4 anos, está correndo e tentando olhar para os lados ou para trás. Porque há precedentes de quedas quando ele corre assim, sem foco.

Correr sem foco. E não é que às vezes um conselho simples que você dá ao seu filho volta com tudo e lhe dá um grande tapa na cara?

E, calma: longe de mim lançar mão de discursinho corporativo sobre concentração em metas e resultados. Nada disso.

Muito mais do que gostaríamos, fazemos isso metaforicamente, na vida. A ordem é apenas seguir em frente, essa ordem muda que nos comanda desde cedo. Então, a gente vai e apenas vai. Isso parece legal, mas não é. E pode ser a origem de muito sofrimento, decepção, descontentamento, depressão. A gente "só vai", mas com mil expectativas não assumidas. Quando batemos na parede da realidade, tudo cai por terra.

E o problema não é tanto de não saber o que nos espera. Não sabemos, mesmo. Não tudo, afinal, pois tem uma coisinha que, sim, podemos ter certeza de que vamos encontrar.

À frente está o presente. 

O que se a|present|a diante de nós. 

Não? E o que mais haveria de haver, na verdade?

Quando tentamos avançar sem observar o que esse 'agora' realmente é, caímos. E, veja, a ideia é apenas tentar. Se vamos saber no que o presente consiste, é outra pergunta sem resposta. O esforço sem-esforço de tentar notá-lo já é suficiente, pois nos mantém minimamente no momento atual.

O futuro não passa de uma imagem na cabeça. O passado, uma lembrança. Melhor entranhar esse saber já sabido e agir como se o passado não tivesse acontecido ao invés de ficar recordando o que é ido, bom ou mau.

Ao invés de correr na direção de algo imaginado, podemos correr sem imaginar nada, cortar o vento do presente, com velocidade total ou com cautela, vai do gosto. Olhar para a frente e viver o presente é a única segurança que podemos ter ao navegarmos por esse pretenso caos da vida/mundo que se desenrola nisso que insistimos em chamar de tempo. 

Nada disso é fácil. E tentar seguir meu próprio conselho é algo que está em andamento, um trabalho em progresso. Mas é simples: um dia de cada vez, uma parte do dia de cada vez, uma hora por vez, minuto a minuto, se puder. A vida não para de se apresentar. E a gente não pode se furtar de algo tão urgente e novo a cada instante.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Amor+

O amor - a palavra e o sentimento - teve diferentes significados ao longo da minha vida. Na infância, era a tradução de afeto, aquilo que se sentia pela família. Na adolescência, o sabor de amar era tão amargo que o amor devia ser evitado a qualquer custo. Quando o amor amadurece, na vida adulta, esse amor homem-mulher e suas variações, você o persegue, de certa forma, e ele te persegue também, desde que já tenha superado aquele amargor juvenil. E você o merece, finalmente. O amor pelos filhos já entra no que você supôs a vida inteira ser o tal do incondicional - e aí você sente que já amou tudo o que tinha para amar.

Mas existe um amor que perpassa todos esses amores e vai além. Um amor tão abrangente que transcende até o amor - a palavra, o sentimento e seus significados. É o que sustenta a cama onde se fazem os filhos e também todo um solo de guerra. O belo e o feio. Sustenta todos os gostos de viver, bons e ruins. É um amor tão grande que é O amor. É de onde tudo emana. É o que faz tudo ser. É um amor que não se sente - se é. E somos todos. Basta ver além das pequeninas formas em que o colocamos, deixar que se rompam e fazer o amor vazar até que preencha tudo, inunde tudo e o mundo, o universo. Somos invólucros desse amor e precisamos aprender a explodir.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Errâncias e extravagâncias de um minúsculo Quixote

Cândido Portinari - Dom Quixote e Sancho Pança Saindo para Suas Aventuras, 1956.
Deste arremedo de vida
o que de mim só sobrou
de uma cegueira sofrida
deste não-ser sem destino
é menos do que não sou
de entreveros intestinos
a exibir os desatinos
de matanças fratricidas.

Não sou motor nem contínuo
moto-contínuo não sou
senhor não sou nem doutor
não sou o criador desse engenho
daqui nem sei pra onde vou.

Não tenho burgo nem terras
brasão de nobre não tenho
não sou bush a fazer guerras
nem vassalo de algum rei.

Jamais fui dono de escravos
não fui, não sou, não serei
nem de mim mesmo sou dono
visto que a vida (eu suponho)
é um mero sonho num sonho

Sem negar que sou confuso
não uso ornamentos no corpo
na lapela cravo não uso
nos cascos não cravo cravos
para trotar sobre minas
de um soturno caos de agravos
das malcheirosas sentinas
desse planeta esquisito.

Moído de tanta pancada
a estiolar boiando no nada
no peito abafo meu grito
pois contra Zeus não blasfemo.

Nesse ruidoso vaivém
diante do cruel Polifemo
como Odisseus sou "Ninguém"
triste e risível figura
de minúscula estatura
a fisgar versos contritos
num oceano de detritos
sem Rocinante nem lança
sem o lhano Sancho Pança
longe dos pagos da Mancha.

o.a. 2008

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Apuros


cansei de estando
ou, ainda que sendo
não sendo, pois
sem ser
não rimo nem verbo

queria ser...
serpente!
deixar casca
e ir em frente
não siri
pondo na concha
por onde segui

ainda que transitivo
ou transitando
preciso ser diretivo
mais direto
menos rodeando

impeço o caminho
ao voltar pro ninho
construído no ar

mas quero sozinho
destruir a bolha
(tão fina)
que me faz correr
no lugar

com passos mais fortes
sentindo os apuros
suando os passados
sangrando os futuros

vou me presentar


--

Inspirou-me a esse texto essa beleza de música (dê play, sem medo):



"Cause where you see a wall, I see a door
Set up with no map, and turn off your torch
Cause where you see a wall, I see a door
You'll get through, you'll be home
You'll be home

Just sit still. Does it hurt?
Does it hurt?" 

~ A Wall - Bat for Lashes

segunda-feira, 21 de julho de 2014

o tal tao

Há uma simplicidade complexa regendo tudo e todos.

Uns tentam compreendê-la; outros, subvertê-la; outros, negá-la; outros, divulgá-la; outros, ignorá-la; outros, destruí-la; outros, explicá-la; outros, escondê-la; outros, crê-la; outros, desvendá-la; outros, esquecê-la; outros, homenageá-la; outros, registrá-la; outros, desfrutá-la; outros, desmascará-la; outros, aceitá-la.

Se o um e o outro realizam tais intenções, é irrelevante. O importante é que há. E mesmo quem diz não haver, há de admitir que é preciso presença para haver ausência. Então, há.

O problema é a maneira como uns tentam impor a outros, e outros a uns, sua forma de abordar "isso", cujo nome também é irrelevante. Tudo e todos têm o direito de trilhar seu próprio caminho, em companhia ou na solidão, para aproximar-se ou distanciar-se "disso" que é ou não é.

Entrar em conflitos e propagar a paz, falar e calar-se, construir e destruir, entrar e sair, levar a sério e tirar sarro, considerar sagrado e profano, divino e mundano, aprender e ensinar, iniciar e cessar, fazer e desfazer: é tudo uma questão de abordagem, mas tudo na direção da mesma coisa, "disso", da simplicidade complexa que rege tudo e todos, em última instância.

Perceber isso parece ser o principal trabalho a empreender na vida. E posso estar errado.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Uma nova espiritualidade




















Nós gostaríamos de nos apresentar
Nós somos uma nova geração de desbravadores espirituais
Nós não precisamos mais de respostas de segunda mão

Nós não culpamos mais os outros por nosso sofrimento
Nossa espiritualidade vai além da culpa e castigo cósmicos
E além do pensamento 'nós e eles'

Nós não nos agarramos mais a livros sagrados
Pois todos os livros são sagrados
Nós não matamos em nome da verdade
Pois a verdade está em todo lugar

Nós estamos dispostos a enfrentar sem medo a experiência do presente
Sem conclusões e sem preconceito
Nua, como no dia em que nascemos
Abertos ao que vier

Nós não esperamos mais pela vida
Ou por alguma revelação divina no futuro
Porque nós vemos vida em tudo o que há
Incluindo a espera pela vida
E vemos Deus em tudo o que outrora rejeitamos

Nós não sonhamos mais em fugir
Ou com algum "Céu" perfeito
Pois nos aconchegamos na incerteza
E a dúvida já é nossa velha amiga
E o não saber é amado com carinho
E a imperfeição é profundamente sagrada para nós

O corpo está incluído
A mente não é a inimiga
Sentimentos são sagrados
A sexualidade é celebrada
Nós amamos a bagunça que é ser humano!

E nós finalmente entendemos
Que sabedoria e compaixão
Absoluto e relativo
Dualidade e não dualidade
Transcendência e imanência
Pessoal e impessoal
Humano e divino
Nunca estiveram separados

- Jeff Foster

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Dois e três

 Eu vejo vocês
e eu sei
que é pra ser

Às vezes eu vejo
só vejo
sem me meter

Sei que vou ter
minha vez
às vezes

Ora com uma
ora com outro
mas vocês...

...vocês têm isso
que só vocês têm
e eu vejo

O abraço d'ocês
abraça o meu ver
e a vista embaça

Eu vejo vocês
e me pego
a vigiar

Pra que o lar
de vocês
sejamos nós três

Eu cuido
eu durmo
acordo vocês

Eu nasço
eu morro
eu vivo vocês

Cês dois
nós três
um

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Um dia na selva internética

Acordei bem cedo. Aliás, mal dormi. A selva da internet chama minha atenção o tempo todo, com sua flora colorida, fauna exótica e ruídos estranhos. A começar pelo cri-cri de um grilo, ao lado da minha rede, dentro da oca: as primeiras notificações do dia, antes ainda que eu me levantasse. E o grilo me segue aonde vou, grilando o que acontece na mata.

O caminho até a caçada diária beira um riacho apinhado de cardumes de notícias, rumo a um oceano de informações. No céu, revoadas de pequenos tuítes migrando sabe-se lá para onde – suas tendências são imprevisíveis. 


 Os trending topics


Chegando ao local que escolhi para caçar e obter algum sustento, fui pego de surpresa por uma chuva torrencial de e-mails. Não foi tanta surpresa assim, já que esse toró de correio eletrônico desaba mais ou menos nesse mesmo período, todos os dias. Procurei me abrigar, mas o aguaceiro era implacável. Tive que esperar passar e fiquei encharcado de pedidos e problemas.

Depois de me secar consegui, finalmente, atingir uma parcela do meu objetivo. Não abati nenhuma presa, mas ao menos colhi um cesto de frutos. Com a tarefa cumprida, relaxei e me distraí novamente, dessa vez com um grupo de macacos que macaqueavam sem parar pendurados na gigante árvore YouTube. Seus truques eram hilários e eu fiquei ali, acho, mais de uma hora assistindo.

O novo Porta dos Fundos tá imperdível, ri muito!


Terminado o espetáculo, resolvi partir em busca de algo mais substancial para levar à minha família. Foi quando me deparei com a monumental parede de pedra Facebook, onde todas as tribos da região gravam tudo o que lhes acontece. Tudo mesmo. Do que comeram de manhã até um mosquito que os perturbou. Li tudo, hipnotizado, e gravei com uma estaca a pequena história do meu dia até ali. 


 Tradução para o português: “hj meu dia foi fda e talz kkkkkkk!”


A próxima trilha ia por terrenos irregulares e lamacentos, mas que, depois de algumas webs de aranha pegajosas, davam em uma bela clareira. Não menos belas eram as amazonas seminuas me convidando para ver mais, uma tentação quase incontrolável de desviar do meu caminho. A essa altura, já tinha desistido da caçada e comido todas as frutas do cesto, mas me esforcei para não ceder àqueles encantos e segui.

Já conformado em voltar de mãos abanando à oca, resolvi mandar um recado à selva inteira. Subi em uma grande pedra e postei em alto e bom som o que pensava, sem gritar, deixando que as palavras ecoassem. Disse que me sentia mal e sozinho naquela floresta bizarra. Que gostaria de conviver mais com irmãos de outras tribos, que parassem de se esconder, e que podíamos mudar isso, juntos.

Qual não foi meu espanto quando ouvi o primeiro comment envenenado passar zunindo pelo meu ouvido direito. E outro, agora do lado esquerdo. Corri o mais rápido que pude, mas um dardo de dislike acertou meu braço. Não em cheio, apenas de raspão. Os arcos e zarabatanas das tribos rivais eram brutais, e seus donos farejavam meu sangue a uma tremenda distância. 

Um comentário... Corre!


Quando me safei da ira dos guerreiros comentadores, fiz um curativo simples com folhas de likes, que aliviou a dor da ferida. Olhei em redor e as coisas haviam se aquietado um pouco. Era uma boa hora para me recolher. Aquela selva havia me deixado exausto e terrivelmente sedento por um gole que fosse de realidade pura.