quarta-feira, 1 de agosto de 2007
Se eu vivesse para sempre
Se eu vivesse para sempre, seria o senhor do tempo. Não dominado por ele, passaria pelo menos 10 anos de cada século a coçar o saco, ou quem sabe 100 anos por milênio. Nos demais, entreter-me-ía com os vais e vens de homens-formiga: nossos sistemas sócio-político-econômicos ascendendo e caindo, edifícios erguendo-se e desmoronando, marés inundando continentes e depois retraindo, a poeira das guerras a se espalhar e dissipar, como os fluxos intermitentes das chaminés das fábricas.
Se eu vivesse para sempre, é certo que veria inúmeras revoluções. Após os brancos, estariam no poder os negros africanos, logo após os árabes, os coreanos, os indígenas, testemunharia o governo gelado dos esquimós, dos tchúkhtil, criadores russos de renas, dos chineses, dos japoneses, que logo formariam uma aliança poderosa e governariam por período um pouco maior que os outros, depois o governo dos mestiços, dos pardos, dos pardos, dos pardos...
Presenciaria tórridos romances e violentas separações, um após o outro, em diferentes níveis e intensidades, numa valsa interminável que daria à luz outras valsas, outras danças e ritmos igualmente intermináveis. Dessa mistura romântico-sexo-musical formar-se-ía um único som, que soaria para o resto da eternidade.
Eu me tornaria o maior amante de todos os tempos, ou de um tempo só. Figuraria nas narrativas dos livros mais femininos, seria o homem da vida de milhares ou milhões de mulheres, que morreriam fiéis a mim e eu a elas. Poderia ser fiel infinitas vezes se eu vivesse para sempre, bem como ser o patriarca de inúmeras gerações.
Veria campos virarem pedra, virarem terra, virarem campo, meu cinema abstrato natural. Além da música e o cinema, entregar-me-ía à literatura. Leria e esqueceria toda a produção intelectual humana. Escreveria best-sellers, aclamadas peças de teatro, gravaria os mais bem-sucedidos discos, calcaria em pedra a minha arte, grudaria minha tinta em tela, para depois apreciar a verdadeira arte, vendo o quadro, o livro, o disco ser comido pelo tempo, seu senhor.
Registraria num blog a história de cada ser humano que cruzasse o meu caminho. Quando a internet como a conhecemos deixasse de existir, inventaria outra coisa similar, promovendo inúmeras revoluções tecnológicas, criando a globalização e a desglobalização, fazendo o mundo pulsar junto com suas cabeças e corações.
Seria empresário, sindicalista, taxista, gari, vagabundo, seria comunista, reacionário, anarquista, situacionista. Tudo isso professando o cristianismo, o budismo, o islamismo, o espiritismo e novos ismos que eu mesmo inventaria. E me tornaria por fim o historiador, o político, o professor, o terrorista, o religioso mais controverso da história, sendo todos estes ao mesmo tempo, dando nós nas cucas de gerações a fio.
Seria testemunha do nascimento e morte de todos os animais e plantas, sua extinção e a formação de novas espécies e mutações, entenderia a maneira com que a evolução evoliu e retrocede em movimentos díspares, porém constantes.
Quando chegasse a ser o último homem sobre a Terra, sem nada a me surpreender, nada pelo que ou contra o que lutar, quando ouvisse, visse, sentisse e pensasse uma só coisa em uma única ação, eu seria deus... e teria um só desejo: morrer.
Inspirado em trecho do conto "O Imortal", do livro "O Aleph", de Jorge Luis Borges, que segue: "Doutrinada num exército de séculos, a república de homens imortais atingira a perfeição da tolerância e quase do desdém. Sabia que em um prazo infinito ocorrem a todo homem todas as coisas. Por suas passadas ou futuras virtudes, todo homem é credor de toda bondade, mas também de toda traição, por suas infâmias do passado ou do futuro. (...) Encarados assim, todos os nossos atos são justos, mas também são indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. (...) Ninguém é alguém, um só homem imortal é todos os homens. Como Cornélio Agripa, sou deus, sou herói, sou filósofo, sou demônio e sou mundo, o que é uma fatigante maneira de dizer que não sou".
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